CARMA  &  MUNDO

 

"Vem, vamos embora, que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer"

 

 

O famoso refrão acima, da música "Pra não dizer que não falei de flores", foi um hino para mim, quando tinha 20 e poucos anos. Ainda hoje, esta música me arrepia a pele, unicamente devido à associação, profundamente enraizada, que naquela época ocorreu entre ela e a prazerosa sensação de que o mundo está na palma das nossas mãos, sensação bem conhecida por todos os jovens, e que é usada contra eles, por aqueles que possuem grande poder de persuasão. Na verdade, discursos de revolucionários nunca me empolgaram, exceto algumas poucas canções de protesto, como a referida aqui. Mesmo já estando, desde a adolescência (como mencionado em textos anteriores), razoavelmente protegido pela intuição de que não tenho poder para mudar/salvar o mundo, quando ouvia a música do Vandré não prestava atenção à Voz Interior e me deixava seduzir pelo agradável pensamento de que tinha, sim, este poder. Então, por fraqueza, a mentira aprofundou-se em mim, tornando-se verdade; e, hoje, apesar de saber que o referido refrão é fruto da ignorância, já que quem realmente sabe aceita tudo, ele ainda tem força suficiente para me emocionar. É assim que pagamos por nossos erros e a isto os orientais chamam de 'carma'.

Apenas pouco tempo atrás, consegui vislumbrar o que é carma e a revelação aconteceu instantaneamente, quando, ao acordar de madrugada, observava atentamente o ambiente do quarto, buscando compreender o que significava tudo aquilo que via/sentia.

 

Já tive experiências, que chamaria de 'parciais', da Unicidade, contudo nunca ocorreu a união total (se tivesse ocorrido, não estaria este texto sendo digitado). A percepção descrita no texto "Altos e baixos", foi significativa, pois senti o Seu poder; mas, faltou o mais importante: a individualidade/personalidade (ego), não dissolveu-se no UM; esteve mais próxima Dele do que nunca, porém ainda manteve-se separada. Mesmo assim, apesar da união apenas parcial, durante alguns dias tudo exterior à "mim" (quase-não-ego, vamos dizer) foi considerado como parte de um filme, que não podia, de forma alguma, me afetar. As cenas passavam e não provocavam as reações habituais de medo, irritação, prazer, dor, etc.

Como ainda não experimentei a união total, onde, segundo os Sábios, não existe carma, mundo e seus paliativos, não tenho autoridade para negar a existência dos fenômenos sensoriais e confirmar a Realidade Única, sendo que esta é algo muito além da minha atual capacidade de compreensão. Portanto, apesar de, teoricamente, saber que carma e mundo são irreais, para esta consciência (mental) eles existem e, consequentemente, me afetam.

Antes de entrar no caminho, o homem entende por 'mundo', tudo aquilo que é exterior às suas percepções (mente/sentidos) e tem certeza de que os demais seres humanos percebem o mundo exterior da mesma maneira que ele. Se, porventura, alguém tiver uma visão da vida diferente da sua, esta pessoa é desajuizada. De acordo com os Sábios, este é o erro fundamental, fruto do egoísmo e causa de todo o sofrimento: acreditar que somos separados/independentes do restante da Existência.

Após entrar no caminho, notei que, pouco a pouco, o conceito 'mundo' tem ampliado-se e já engloba algumas manifestações do mundo interior (egocêntricas), mundo este ao qual raramente prestamos atenção. Provavelmente, este processo deve continuar até determinado ponto, o limite entre a dualidade e a Unicidade, quando, acredito, será necessário um salto sobre o abismo que separa o irreal do Real. Mais de uma vez passei pela rápida experiência de sentir que mente, sentidos, sentimentos, sensações e quase todos os demais atributos do ego, são exteriores a "Mim", sendo que apenas uma coisa é o mundo interior (a "Testemunha", mencionada em textos anteriores). É difícil explicar e entender esta experiência, embora, mesmo neste caso, seja perceptível que a dualidade (ego) sutilmente persiste, e que, realmente, a "Testemunha" (não-ego) não estava sozinha, pois, se estivesse, nem mesmo Ela seria percebida (para perceber-se alguma coisa, são necessários dois: quem percebe e aquilo que é percebido); também não poderia haver a sensação de interior e exterior. Bem... antes que me atrapalhe, melhor terminar este parágrafo por aqui, pois sinto que estou me aprofundando em assunto que apenas conheço superficialmente; ainda mais porque, o pouco que conheço, é extremamente complicado para traduzir em palavras...

 

Há algum tempo adotei o hábito de, antes de levantar-me da cama, após a noite de sono, observar atentamente os mundos interior e exterior. Nunca há surpresa: assim que acordo, o caldeirão mental também desperta, a sensação do "fulano de tal" imediatamente retorna, as coisas materiais ao redor reassumem as formas familiares de sempre, etc. Então, como há a nítida percepção de que estou 'de volta', sou forçado a admitir que acontece, diariamente, um desligamento e um posterior 'religamento' do ego, sendo que, obrigatoriamente, deve existir um lugar onde ele fique, vamos dizer, 'guardado', enquanto está inativo. A explicação lógica para o fato de que "eu" (o fulano de tal) continue confiando em algo que me abandona à própria sorte, toda noite, é que quem confia não sou "EU" (nossa real identidade, como ensinam os Sábios), mas sim o próprio objeto da confiança (ego). Neste caso, o réu é também o juiz e, portanto, não me surpreende o fato da identificação (apego) egoísta persistir, embora já apresente alguns pontos fracos em sua anterior inexpugnável defesa.

Em uma das reflexões do pós-despertar, ocorreu-me uma importante revelação: o carma é o mundo e o mundo é o carma. O carma de cada um define como cada um percebe o mundo e, portanto, não há duas pessoas que interpretem o mundo da mesma forma. Carma é, simplesmente, o conjunto de nossas tendências mentais latentes (inconscientes), responsáveis pelas características únicas de cada indivíduo (personalidade); é como a lente, sobre os olhos: ela define como será a nossa visão. Estas tendências subconscientes, como já mencionado no texto "Água mole, em pedra dura...", existem devido às correntes de pensamentos, que são aceitas pela mente individual, no curso da Existência. Um novo pensamento consciente/insistente, aos poucos vai criando um 'sulco' (caminho) mental e acaba tornando-se autônomo, inconsciente. E todos podem perceber que, a mente inconsciente, é mil vezes mais poderosa do que a mente consciente; isto explica o fato de que, mesmo quando temos certeza de estarmos errados (caso deste digitador), é extremamente difícil conseguirmos corrigir o rumo de nossas vidas. É exatamente como, por exemplo, o Rio Colorado, que cruza o Grande Cânion do Arizona. Este rio (pensamento) começou como um simples filete de água, fluindo sobre o solo (mente) e, lentamente, foi aprofundando-se na terra (alma) até chegar à condição atual. No início da ação erosiva, seria bastante fácil acabar com ou desviar aquele rio; mas, fazer isto, hoje, é uma tarefa hercúlea. Assim também se dá com os pensamentos subconscientes, que 'escavam' rotas personalizadas (carma) na mente e estão muito mais firmemente estabelecidos, em nós, do que o Rio Colorado, no solo americano, já que nem mesmo a morte, nos alertam os Sábios, pode destruí-los. Não sei como o carma sobrevive à ela; porém, cito as palavras do Senhor Buda: "Apenas a faculdade de pensar (raciocínio) desaparece com a morte; as tendências mentais continuam existindo".

Quando era jovem, ouvia falarem em carma e imaginava ser aquilo um fenômeno sobrenatural. Esta ideia é errada (embora agradável à mente especulativa), pois ele (carma) está aqui mesmo, neste plano de consciência em que vivemos. Ele é atributo do ego e desaparece com este, durante o sono, o que caracteriza algo relativo (irreal). Como ensina Ramana Maharshi, o carma é imediatamente transcendido, não mais escravizando quem deixou de identificar-se com o ego/mente; tal é o Poder Supremo, que impera no Reino de Deus, e hoje sei, de coração, que isto é Verdade. Na comparação com o rio, seria o mesmo que, de repente, todo o estado do Arizona sumir do mapa: por onde correriam as águas do Colorado? Como ele poderia continuar existindo? O impossível para as criaturas, é facílimo para o Criador...

Na citada reflexão, percebi (sem influências exteriores) que o carma é o nosso carcereiro, mesmo quando ele nos parece favorável e temos a impressão de que somos os senhores de nossas vidas. Gostaria de citar um exemplo da própria experiência do digitador. Há uns 15 anos, 'eu' (ego) tinha casa à beira-mar, com lancha particular ancorada em frente, sempre disponível para aventuras submarinas e passeios. Quando olhava, da varanda, a magnífica paisagem ao redor, o peito estufava-se de orgulho, sentia-me o imperador do mundo e achava que, aquilo sim, era aproveitar a vida. Contudo, alguns anos depois, comecei a perceber o erro e, em determinado momento, vi que não dava mais para continuar ignorando a Voz Interior e acabei me desfazendo daquilo tudo. Hoje percebo que o status, que me esforcei tanto para alcançar e que era tão prazeroso, não alcancei por ter vencido na vida; não obtive aquela condição por livre e espontânea vontade: foi imposição do carma (destino), fruto de minha ignorância. Não havia motivo algum para orgulho. O mundo em que vivemos não é resultado de nossa escolha ou de nosso esforço atual: é fruto do carma, consequência de nossos pensamentos e atos passados. Não devemos, contudo, ter a impressão de que, devido à inevitabilidade do destino, não há solução para o cativeiro, já que não temos poder para mudar o presente. A auspiciosa notícia dos Sábios é de que apenas o Real (Absoluto) nunca pode ser derrotado e o destino (carma), embora, em nosso atual estágio de evolução, nos pareça real, na verdade é irreal (relativo). A grande ironia da Lei do Carma (Evolução) é que o destino está destinado a ser derrotado, na hora certa.

Voltando às revelações daquela madrugada: então, o que conquistei na vida, não são "minhas" conquistas, das quais poderia me envaidecer; e, o que ainda sonho conquistar, não tenho poder algum para alcançar, por decisão própria. Cuidado agora, pois os profetas do pensamento positivo estão por aí, tentando (talvez por ignorância, talvez por interesses escusos) injetar o mal em nossos corações. Aceitar as suas teorias, de que podemos tudo, através da força do pensamento (poder mental), nos leva a afundar ainda mais no erro, no orgulho e na arrogância. As palavras do Senhor Jesus: "Tudo o que pedirdes com fé, na oração, vós o alcançareis. Se disserdes àquela montanha: 'Levanta-te daí e atira-te ao mar!', isto acontecerá", também são tendenciosamente interpretadas, no intuito de justificar nosso egoísmo. Felizmente, o nível de fé necessário para operar prodígios de tal magnitude, não é acessível às pessoas comuns (a maioria de nós) e, os poucos que possuem o poder da Fé que remove montanhas, não se interessam por prodígios mundanos/materiais. Estas duas conclusões explicam por que elas (as montanhas) continuam nos mesmos lugares, desde sempre... Como o Grande Instrutor chama o ego/mente de 'adversário', não poderia Ele ensinar que, a oração de ilimitado poder, seja mental. Acredito, sim, que este ensinamento destina-se a provocar uma injeção de ânimo em todos aqueles que estão no Caminho e que, portanto, já começaram a abandonar as suas velhas (e prazerosas) orações egoístas.

A inevitável lei do carma impede que a experiência do digitador, por força própria, possa ajudar os demais, exceto se a pessoa, por seus méritos cármicos, estiver pronta para aceitar a dura Verdade de que ela não tem poder algum ("...nem mesmo sobre um fio de seu próprio cabelo", como alertou o Cristo). Apenas neste caso, a mensagem aqui divulgada (que não é deste ego/mente que digita) pode mudar, para melhor, o rumo de sua vida. Acredito que a sincera aceitação de que, em nosso estágio de evolução espiritual, por nós mesmos nada podemos conquistar, nos fortalece e aproxima-nos de algumas das melhores virtudes: humildade, paciência e perseverança.

 

Neste instante, os mais orgulhosos ou incrédulos podem arrancar um fio de seu cabelo, para por à prova o Senhor Jesus; então, com o fio morto entre os dedos, se convencerão de que podem, sim, mudar o destino. Contudo, a Verdade é outra: o fio arrancado estava destinado a morrer exatamente agora e a pessoa foi um simples instrumento do carma, para este fim...

 

 

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19/12/2008

 

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