Recentemente procurei na web por alguma tradução, em língua portuguesa, dos "Quarenta versos sobre a Realidade" e nada encontrei. Então, ocorreu-me que poderia tentar fazer uma. Contudo, antes de começar, aguardei alguns dias, para avaliar se a ideia era um simples capricho da mente ou se havia sinceridade na intenção.

A obra, originalmente escrita em idioma tâmil ("Ulladu Narpadu"), foi traduzida para o sânscrito na década de 1930, sob o título "Sat-Darshanam". Posteriormente, traduções para diversos idiomas apareceram e, como os tradutores provavelmente não eram poetas, a poesia acabou sendo sacrificada, em detrimento da fidelidade à transmissão dos ensinamentos do Sábio de Arunáchala.

Usei, como referências, duas versões: uma em espanhol e, outra, em inglês. Comparando as duas e colorindo-as com as "tintas" da minha opinião pessoal (relativa e sujeita a enganos), cheguei ao resultado abaixo. Inseri comentários (em azul), que talvez sejam úteis para quem não está familiarizado com os ensinamentos de Ramana Maharshi ou que seja neófito no caminho. Os buscadores mais experientes, com certeza, não precisarão deles. Como sempre, alerto que não me considero o dono da Verdade; portanto, os comentários e a tradução abaixo, devem ser considerados com cautela.

 

Oh, Ramana! Guia esta mente para que ela consiga expressar, o mais corretamente possível, a Verdade das Tuas palavras.

 

 

12/11/2008

 

http://quemsoueu00.blogspot.com.br/

 


 

   QUARENTA VERSOS SOBRE A REALIDADE

 

 

 

A  INVOCAÇÃO

Pode haver uma sensação de "eu" (personalidade), separada da Realidade (Verdade, DEUS)?

Livre de pensamentos habita, no Coração, a Realidade

Como conhecê-La, então, se Ela está além da mente (isto é: além do raciocínio)?

Conhecê-La é estar (manter-se permanentemente focado) no Coração.

- A expressão "Coração" não refere-se ao órgão corporal, mas a algo que ainda não vivenciei, experimentalmente. Segundo algumas interpretações dos ensinamentos do Sábio, Ele seria vivenciado como um ponto, na mesma altura relativa do coração físico, só que do lado direito do tórax. Acho que este posicionamento físico, de algo muito além da matéria e das sensações, pode ser útil  se usado como 'ancoradouro' para nossas mentes errantes, um ponto mais ou menos definido onde inicialmente poderíamos fixar a atenção interior, evitando as distrações habituais, até que as mentes adquiram disciplina/calma suficientes, e a atenção interior possa ser corretamente aplicada sobre o "sentimento-eu" (ou autoinvestigação).

 

Quem teme a morte, que busque refúgio aos pés do Senhor (a Realidade Interior - EU),

Onde não existe nascimento e nem morte

Livre dos sentimentos "eu" (eu sou isto e aquilo) e "meu" (isto e aquilo são meus),

Como ainda poderia, o medo da morte, atormentá-lo?

Ele alcançou a Imortalidade (Eterna Consciência Superior e, não, a imortalidade do corpo físico).

- A morte não pode tomar mais nada de quem, espontaneamente, já abriu mão de tudo, inclusive da própria vida. Estes não temem o fim da carne e da individualidade.

   

 

OS  VERSOS

   

1.    

Já que percebemos um mundo de muitas formas, uma Causa Única, devemos aceitar

Aquele que vê ("eu"), o que é visto ("mundo" ou "não-eu") e o ato de ver, estão, todos eles, contidos no EU (nossa verdadeira identidade).

- Perceber muitas formas é consequência do egoísmo, que nos faz crer que somos separados do restante da Criação. Então, me considero uma "forma", limitada pelo espaço e pelo tempo, e independente das demais "formas" (seres vivos e coisas) que me rodeiam.

 

2.   

Todas as religiões postulam a existência da alma individual ("eu"), do mundo e de Deus

Enquanto perdurar o ego ("eu"), estes três permanecem separados (Deus, indivíduos e mundo)

Viver sem ego, na Realidade, onde os três são UM, é a verdadeira Vida.

 

3.   

Que utilidade há em discussões sobre a realidade do mundo, da alma e de Deus?

Viver na Realidade, onde não existe ego e polêmicas, é a verdadeira Vida.

 

4.    

Enquanto perdurar a crença de que possui uma forma, para esta pessoa Deus também terá uma forma (material ou mental)

Contudo, quando ela dissolve-se no Uno, o que há para ser visto?

Ela mesma é o Uno (DEUS), completo e sem limites.

- Quando o açúcar dissolve-se na água, sua forma desaparece, pois ele tornou-se a própria água.

 

5.    

O corpo é constituído por 5 envoltórios

O corpo e o mundo são inseparáveis.

Terá alguém, sem um corpo, já percebido o mundo?

- A expressão "corpo" não deve ser interpretada como, unicamente, o envoltório de carne e osso. A mente é considerada corpo mental.

- A primeira frase deste verso ("O corpo é constituído por 5 envoltórios"), me surpreendeu, mas está assim mesmo, nas 2 traduções que usei como referências. A surpresa ocorreu devido ao fato, conhecido por todos que estão familiarizados com a vida de Ramana Maharshi, de que Ele não transmitia conhecimentos inúteis e nem alimentava polêmicas. Na maioria das vezes em que os visitantes perguntavam sobre natureza do ego, corpos astrais, etc., Sua resposta era algo assim: "Não perca tempo com isto; descubra, sim, a quem, dentro de você, ocorre esta e outras perguntas".

 

6.    

O mundo existe devido às percepções dos 5 sentidos

E a mente percebe o mundo através dos órgãos dos sentidos.

Portanto, o mundo existe apenas na (para a) mente.

 

7.    

Embora tanto a mente quanto o mundo desapareçam e reapareçam juntos (quando dormimos ou acordamos, respectivamente)

É a mente que ilumina o mundo (isto é: a sua mente cria o seu mundo).

A fonte, de onde a mente e o mundo afloram e submergem,

É a Realidade, que não aparece e nem desaparece.

- A Realidade não aparece, porque nunca desapareceu. Ela está sempre presente, dentro de nós, embora imperceptível, da mesma forma que o Sol está sempre brilhando no céu, mesmo nos dias em que não podemos vê-lo, devido a nuvens pesadas.

 

8.    

A devoção ao Altíssimo, sob qualquer nome ou forma, é um meio para a obtenção de Sua visão ("Graça").

No entanto, a verdadeira visão Dele, é viver na Realidade

 

9.    

A dualidade sujeito/objeto e a trindade vidente/coisa vista/ato de ver (percepções causadas pela sensação de individualidade, egoísmo)

Não existem separadas da Realidade (isto é: não têm realidade própria).

Quando interiorizamos a mente, buscando a Realidade, dualidades e trindades desaparecem.

Quem A alcança torna-se um Sábio e não é mais enganado pelas ilusões do mundo.

 

10.

O conhecimento (intelectual) e a ignorância são inseparáveis: onde há um deles, o outro também está presente.

É verdadeiro conhecimento alcançar a fonte, de onde estas relatividades afloram (o Coração), e ali permanecer.

 

11.

Pode, o conhecimento exterior, sem o conhecimento de si mesmo (Verdade), ser verdadeiro conhecimento?

Conhecimento (intelectual) e ignorância sucumbem, diante da Realidade Interior ("EU"),

Que é a fonte do conhecedor ("eu") e do conhecido ("não-eu" ou mundo).

 

12.

A Realidade brilha por si mesma, onde nada mais há para ser conhecido,

Pois Ela é o próprio Conhecimento Absoluto (DEUS)

Portanto, não é um estado de vazio mental (pelo fato de encontrar-se além do intelecto/raciocínio).

 

13.

O EU (nossa verdadeira identidade), que é Conhecimento Absoluto, é a Realidade.

Conhecer todos os fenômenos do universo, não é o verdadeiro conhecimento.

Este falso conhecimento, que, na verdade, é ignorância, não pode existir sem o EU,

Da mesma forma que as joias feitas de ouro, não podem existir sem a matéria-prima ouro.

 

14.

Se a primeira pessoa, "eu" (egoísmo), existe, então as demais, "você" e "ele", também existirão.

Através da autoinvestigação persistente da natureza deste "eu" pessoal,

Ele finalmente desaparece, assim como as sensações de "você" e "ele".

O estado resultante, a Realidade, é nossa verdadeira e natural Consciência.

 

15.

Passado e futuro apenas existem devido ao presente (isto é: não são reais, por si mesmos).

Tentar conhecer a natureza de passado/futuro, sem conhecer a natureza do presente (Realidade),

É tão absurdo quanto tentar iniciar uma contagem numérica, sem conhecer os algarismos.

 

16.

Fora de nossa consciência habitual ("eu"), espaço e tempo não existem.

Se nos consideramos corpos (físicos ou mentais), então estamos limitados ao espaço e ao tempo

Contudo, somos Realidade além dos corpos ("EU") e, portanto, espaço e tempo não têm poder sobre nós.

- As relatividades só nos afetam, se acreditamos em sua realidade. Quem acha que é carne, está fadado aos sofrimentos da carne ("O que nasce carne, morre carne" - Jesus Cristo). O melhor exemplo de que nossas crenças, embora falsas, são verdadeiras para quem acredita nelas, é aquele da cobra e da corda (parábola descrita no texto "Relatividade e Realidade").

 

17.

Tanto o Sábio, quanto o ignorante, possuem a consciência do "eu" (personalidade).

Entretanto, o ignorante limita o "eu" a um corpo (físico ou mental),

Enquanto o Sábio realizou que o "EU" (Consciência Superior), engloba o corpo ("eu") e o mundo ("não-eu")

 

18.

Tanto para o Sábio, quanto para o ignorante, o mundo existe.

Entretanto, o ignorante considera que o mundo tem realidade própria (absoluta),

Mas o Sábio realizou que a Realidade Interior ("EU") é a causa da existência do mundo (isto é: o mundo não é real por si mesmo).

 

19.

Polêmicas sobre destino (carma) e livre-arbítrio, qual dos dois governa as nossas vidas, etc.

Ocorrem apenas para aqueles que não conhecem a Fonte Única de ambos.

Quem conhece o Senhor do destino e do livre-arbítrio ("EU"), não é afetado nem por um e nem pelo outro.

 

20.

Ver Deus como algo exterior a nós mesmos, é apenas uma imagem mental.

Viver na Realidade, é a verdadeira visão de Deus.

 

21.

As escrituras sagradas referem-se à visão de Deus, mas são apenas alegorias.

Como nossos sentidos poderiam perceber Deus, se Ele é nossa própria Consciência?

A única maneira de ver Deus, é SER Deus.

 

22.

DEUS (a Realidade Interior) ilumina (cria) a mente e brilha dentro dela.

Como podemos conhecer Deus, já que a mente impura busca apenas as percepções exteriores (sensoriais)?

Interiorizar a mente, fixando-a em sua fonte (o Coração), é a única maneira de conhecê-Lo.

 

23.

O corpo nunca diz: "eu" (isto é: o corpo não tem consciência própria)

Não existe sensação de "eu", no sono profundo (sono sem sonhos)

Quando este "eu" acorda, o mundo aparece.

Portanto, para conhecer a natureza do mundo, devemos rastrear a sensação do "eu", até a sua origem (o Coração).

 

24.

Entre a Realidade ("EU") e o corpo, e limitado por este último, algo surge como o "eu" (personalidade).

Esta manifestação é conhecida como "ego", "alma", "mente", "corpo sutil", "ilusão", "escravidão", etc.

 

25.

O ego aflora de um corpo (físico ou mental) e fortifica-se, enquanto nos identificamos com tal corpo.

A investigação interior de sua natureza, revela que ele não tem realidade própria.

 

26.

Quando o ego está presente, o mundo aparece; quando o ego está ausente (sono, desmaio, etc.), o mundo desaparece.

Portanto, o mundo é o ego (isto é: o mundo é uma criação mental).

A autoinvestigação da fonte de onde se origina o ego (o Coração), é o caminho para a Realização.

 

27.

O estado em que o ego não aflora, é a Realidade.

Tal estado é alcançado pela compreensão da natureza do ego,

Pela busca da fonte (o Coração) de onde ele emerge e submerge.

Este é o meio para alcançar a Realização (Felicidade eterna).

 

28.

Da mesma forma que um homem mergulha em um lago profundo, para recuperar algo seu,

Mergulhe fundo dentro de si mesmo, com a mente inabalavelmente fixada no Coração

E descubra onde origina-se a sensação do "eu" (ego).

 

29.

Meditar sobre conceitos tais como "eu sou espírito" ou "eu sou filho de Deus", podem ser úteis, mas não são decisivos.

Apenas a autoinvestigação sobre a fonte do ego, conduz à Verdade sobre si mesmo.

 

30.

O ego por fim desaparece, quando, com a mente interiorizada, persistimos na autoinvestigação: "Quem sou eu?"

Então, somos intuitivamente guiados para o Coração e a Realidade revela-se como o EU.

 

31.

Quem pode compreender o estado daquele que dissolveu o ego, no EU?

Para ele, apenas a Realidade tem valor.

 

32.

Embora as escrituras sagradas proclamem: "Tu és Aquilo",

É apenas sinal de debilidade mental, meditar no tema "Eu sou Aquilo",

Porque você é eternamente Aquilo.

O que deve ser feito é interiorizar a mente e realizar Aquilo (a Realidade Interior), sem palavras e formas.

 

33.

Afirmações como "eu não realizei o EU" ou "eu realizei o EU", são absurdas.

Por acaso, há dois "eus" em cada ser humano, para que um deles seja o objeto da realização do outro?

A experiência mais profunda de todos indica que apenas existe o EU.

- Com a expressão "apenas existe o EU", Ramana nos alerta de que tudo que achamos que é separado de nós, na verdade, faz parte de nossa essência.

 

34.

Não manter-se firmemente estabelecido no Coração

E participar de polêmicas sobre a natureza de Deus e do mundo,

É para aqueles que estão mergulhados na ilusão.

 

35.

Realizar a Realidade Interior, é a maior demonstração de poder.

Os demais poderes são como as aquisições em um sonho:

Apenas duram enquanto estamos sonhando.

Aqueles que vivem na Realidade, não são iludidos por eles.

- Aqui, o termo "poderes" refere-se a poderes ocultos (clarividência, etc.).

 

36.

Apenas se nos consideramos um corpo (físico ou mental), pode nos ocorrer o pensamento "eu sou espírito".

Contudo, porque haveríamos de precisar afirmar "eu sou espírito"?

Isto é tão desnecessário quanto um homem proclamar "eu sou um ser humano".

 

37.

Teorias de que as dualidades são reais, durante o caminho espiritual,

E a Unicidade é real apenas quando alcança-se a Realidade, são falsas.

O décimo homem sempre esteve presente, mesmo quando era ansiosamente procurado.

- A parábola dos dez homens tolos foi apresentada várias vezes por Ramana Maharshi. Dez amigos atravessaram um rio caudaloso e, ao chegarem na outra margem, resolveram verificar se nenhum deles foi arrastado pela correnteza. Então, o primeiro homem, batendo no peito de cada um dos companheiros, contou, em voz alta, até nove. Todos se assustaram, pois faltava um. O segundo homem repetiu a contagem, mas cometeu o mesmo erro, esquecendo-se de contar a si mesmo. E assim os demais fizeram. Um viajante que passava, ouvindo os choros e lamentos dos dez homens, pelo suposto afogamento de um deles, aproximou-se e inteirou-se do caso. Percebendo o erro, contou ele mesmo, em voz alta, os homens, batendo no peito de cada um e, desta vez, o total foi de dez. Imediatamente, os homens tolos comemoraram o "reaparecimento" do décimo companheiro. A lição da parábola é de que a Unicidade está sempre presente, percebamos Ela ou não. Como Unicidade e dualidades são mutuamente excludentes ("Não podeis servir a dois senhores"  -  Jesus Cristo), então, as dualidades, que são apenas ilusões como os sonhos, nos impedem de perceber a Unicidade (Realidade). Segundo os Sábios, até mesmo a afirmação de que a Unicidade está sempre presente não é estritamente correta, pois apenas Ela existe; portanto, não pode haver "presença" ou "ausência" Dela.

 

38.

Enquanto persistir a sensação de que é o autor de seus atos ("eu fiz isto"; "eu alcancei aquilo"),

O homem estará sujeito a colher os frutos de suas ações, boas ou más (destino ou carma).

No entanto, ao realizar, dentro do Coração, a verdadeira natureza do autor dos atos (ego), este desaparece (pois não é real em si mesmo).

Este é o estado de Libertação Eterna, pois, para esta pessoa, os grilhões do carma deixam de existir.

 

39.

Apenas quando alguém sente-se prisioneiro (do ego/mundo),

Podem ocorrer pensamentos sobre escravidão e liberdade.

Com a autoinvestigação "Quem é o prisioneiro?" (isto é: pela realização da verdadeira natureza de quem se sente prisioneiro),

A Realidade, que é eternamente livre, é alcançada.

Então, não surgem mais pensamentos sobre liberdade e escravidão (isto é: vive-se em Paz).

 

40.

Alguns eruditos dizem que, após a Libertação, as formas (separatividade, dualidade, egoísmo) permanecem.

Outros dizem que desaparecem ou, ainda, que podem ou não desaparecer.

A extinção do ego, que é o criador das teorias sobre libertação e de todas as outras mais, é a verdadeira Libertação.